segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A RIQUEZA DA LINGUAGEM NÃO-VERBAL
Para levar ao espectador informações que os personagens já sabem, roteiristas precisam usar a criatividade para fazer uma exposição interessante
Gabriel Jareta (Fonte: Revista UOL)

Artificios narrativos poupam espectadores de longos e tediosos diálogos explicativos

 

Se o cinema é uma arte fundamentalmente de imagens, como fazer para explicar aos espectadores fatos e circunstâncias que eles precisam saber sobre os personagens, a história ou o espaço do filme sem se valer de longos e tediosos diálogos - ou mesmo monólogos? Na produção do roteiro, a "exposição" é o artifício responsável por contar ao espectador o que os personagens do filme, de modo geral, já sabem: em que condições vivem, por que são motivados a determinadas ações, o que desejam. Nem sempre, porém, essa é uma tarefa fácil.

- A palavra é com a literatura, com o teatro, já o cinema é a arte da imagem, tem de mostrar, nunca contar - diz o roteirista Di Moretti (autor de Cabra-Cega e Latitude Zero, entre outros). Para Moretti, a exposição deve valer-se de uma regra para o cinema clássico do cineasta americano Billy Wilder.
- O público nunca pode saber menos do que o personagem - afirma.

Isso equivale a dizer que o espectador precisa, em algum momento, ser situado a respeito de coisas que fazem parte do passado dos personagens dentro do tempo da narrativa do filme.

David Howard e Edward Mabley dizem em seu livro Teoria e Prática do Roteiro (Editora Globo) que o grande problema da exposição é que ela só é necessária ao espectador, e portanto a maneira de revelar sem cansar precisa se valer mais de artifícios dramáticos do que puramente narrativos. "De modo geral, a exposição fica mais interessante quando transmitida num conflito, que aliás é a forma mais usada. A informação expositiva torna-se, então, um subproduto de uma cena dramaticamente envolvente por direito próprio", escrevem Howard e Mabley.

Vale lembrar que, na primeira exibição de cinema da história, Chegada de um Trem à Estação, em 1895, parte do público parisiense gritou assustada com a aproximação da locomotiva, imaginando que ela sairia da tela. Com o passar do tempo, o espectador de cinema foi se acostumando a "aceitar" a fantasia e entender a gramática própria dos filmes. Para o roteirista José Roberto Sadek, autor de Telenovela: um Olhar de Cinema (Summus Editorial) e professor do curso de especialização em Roteiro da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), alguns jargões que eram usados para explicitar a passagem de tempo, como as horas passando em um relógio ou um calendário perdendo folhas, quase não são mais utilizados.

- Hoje as pessoas já estão acostumadas a entender uma elipse temporal - diz Sadek.

Verbal e não verbal

Um exemplo de passagem do tempo resolvida com criatividade está presente logo no início de Cidade de Deus (Brasil, 2002) como desfecho da famosa "cena da galinha", e é descrita no roteiro de Bráulio Mantovani. A imagem de Buscapé em pose de goleiro, tentando capturar a galinha, congela e funde-se com a imagem do personagem ainda criança, na mesma pose, jogando no gol em um campinho na Cidade de Deus. Para situar, um letreiro anuncia: "ANOS 60". Daí depreendemos uma informação importante: vamos acompanhar parte da história em flashback pelo ponto de vista de Buscapé, que era uma criança nos anos 1960.

Embora seja mais interessante explicar situações por meio de conflitos, a busca por essas cenas é uma "pedra no sapato" dos roteiristas. Na edição da revista Script de outubro de 2009, o autor de um texto sobre o tema (que se autointitula "Mistery Man") chama a exposição de algo como um "pé no saco". Muitas vezes, a saída dos escritores é apelar para a narração em off ou deixar um personagem falar - ainda que correndo o risco de perder a atenção do espectador.

"Algumas vezes são monólogos, como os 'discursos do vilão' em que o sujeito do mal explica para o herói capturado seu plano diabólico para dominar o mundo, que naturalmente vai começar em 'x' minutos. Então, é claro, o herói protagonista escapa e sabota o tal plano no momento exato antes do fim da contagem regressiva", relata o tal Mistery Man.

Para José Roberto Sadek, se é preciso falar muito, as intenções do roteirista não ficaram claras.

- Tudo no cinema significa, e é sempre muito mais interessante revelar os conflitos pelas ações do que por meio das falas - afirma Sadek.

Muletas

Na opinião de Di Moretti, a narração em off é uma bengala que precisa ser usada com moderação. Ele cita o exemplo de seu filme Cabra-Cega, em que a personagem Dora, de um grupo de resistência à ditadura militar no Brasil, prepara um quarto, organizando e esticando lençóis.

- Ela está arrumando o quarto para alguém, então logo no começo ficamos sabendo que alguém está chegando - diz Moretti.

Embora o recomendável seja evitar a fala - ou a narração em off -, em muitos casos ela pode ser bem-sucedida se ajudar a compor a

situação ou trouxer informações novas. Segundo Howard e Mabley, trata-se de uma herança dos coros do teatro grego, responsáveis, por exemplo, por situar historicamente as peças.

O próprio narrador de Cidade de Deus, Buscapé, tem suas falas em meio a cenas de conflito ou humor, o que faz com que elas não cansem o público.

A narração em off pode ser muito útil também quando aparece "disfarçada": a abertura de Cidadão Kane, um dos maiores filmes da história, resume a trajetória de sucesso e poder de Kane por meio de um cinejornal ("News on the March") e manchetes de jornal em diversas línguas, para revelar o alcance de sua influência e prestígio. A manchete de jornal, aliás, é uma forma muito utilizada para a exposição - o passado de glórias do decadente personagem de Mickey Rourke em O Lutador, por exemplo, é contado em poucos minutos, durante os créditos, pelas manchetes de jornais que tomam a tela. Howard e Mabley também lembram da abertura de Amadeus (1984), em que Antonio Salieri revela muitas informações importantes sobre si e Mozart enquanto conta a um padre quem ele é.

A exposição não verbal, ou seja, aquela que não se vale prioritariamente da fala, parece ser a forma mais indicada para expor as informações necessárias. Em seu blog, Mistery Man lista alguns casos interessantes. Numa passagem de Maria Antonieta (2006), de Sofia Coppola: o público fica sabendo que a personagem principal deu à luz seu terceiro filho quando os empregados do palácio penduram um quadro com a imagem dela com três crianças. Na sequência, após um corte, os empregados trocam a imagem por outra com Maria Antonieta, duas crianças e um carrinho vazio, para em seguida mostrar um funeral.

Verossimilhança

Quando muito pouco é contado, o espectador passa a descobrir informações sobre o filme por meio de detalhes que surgem em meio a conflitos ou em cenas aparentemente banais. Em Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut, pequenos acontecimentos vão esclarecendo aos poucos a relação de Antoine com a mãe e com o pai (que descobrimos não ser o pai biológico). Há uma cena reveladora em que o casal fica apreensivo ao ouvir uma batida na porta, por pensar que se trata da cobrança do gás - e nesse momento o público tem noção das condições financeiras da família.

O problema de uma exposição malfeita geralmente é claro para o espectador: é algo fora do lugar, uma sensação de estranheza ou de algo que não soa "natural". Na televisão - principalmente em telenovelas - é comum o uso dessas reiterações e é um espaço onde elas são mais aceitas.

A telenovela exagera cansativamente o mesmo assunto, até diariamente, com o objetivo de fazer o espectador se conectar ou se reengajar - diz José Roberto Sadek.

Em seu artigo na revista Script, Mistery Man chama essa reiteração de "leitura idiota", pois sua função é explicar aos personagens coisas que eles já estão cansados de saber, de modo que o espectador desavisado possa ficar sabendo também. É o método do "As you know, Bob", ou seja, "Como você sabe, Bob". Num diálogo imaginário, o cientista louco diria para seu assistente: "Como você sabe, Bob, eu estou prestes a concluir meu plano de clonar seres humanos e controlar suas mentes". Mistery Man explica a estranheza, mesmo no mundo da ficção: "O que há de errado com esses exemplos? Eles sacrificam a verossimilhança. As pessoas não se comportam assim", escreve.

Excesso

Um dos maiores críticos de cinema do Brasil, Jean-Claude Bernardet, escreve no artigo "Os argentinos dão um banho nos brasileiros", de 2003, republicado em Cinema Brasileiro - Propostas para uma História (Cia. das Letras), sobre os problemas de narração na maioria dos filmes brasileiros do começo da década, que ele classifica como "pesadona". Ele afirma que "tem-se constantemente a sensação de que, para passar de uma cena a outra, roteiristas e diretores precisam explicar que o personagem fechou a porta, trancou-a, chamou o elevador, entrou no elevador, saiu do prédio... Constantemente a sensação de que, para qualquer ação, cometa o personagem um assassinato ou tome uma média com pão e manteiga, mil motivações psicológicas ou outras precisam ser expostas".

A opinião de Bernardet resume a necessidade de usar um "conta-gotas" para explicar as situações, além de saber dosar o quanto tempo isso vai durar. Com criatividade, o roteirista precisa fazer com que o espectador deseje saber mais sobre aquelas pessoas e aquele universo na tela. Oferecer demais ou em hora errada vai apenas cansá-los.