sexta-feira, 4 de junho de 2010

MARAVILHAS DA ENUNCIAÇÃO

Passagem de Alice no País das Maravilhas ilumina estudos da linguagem

José Luiz Fiorin (Fonte: Revista UOL)

O livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, trata de questões muito interessantes para a teoria da linguagem. Uma delas é o sentido de palavras, como "hoje", "ontem", "amanhã":
"- Veja, agora a senhora está bem melhor! Mas, francamente, acho que a senhora devia ter uma dama de companhia!
- Aceito-a com todo prazer! - disse a Rainha. - Dois pence por semana e doce todos os outros dias.
Alice não pôde deixar de rir, enquanto respondia:
- Não estou me candidatando... e não gosto tanto assim de doces.
- É doce de muito boa qualidade - afirmou a Rainha.
- Bom, hoje, pelo menos, não estou querendo.
- Hoje você não poderia ter, nem pelo menos nem pelo mais - disse a Rainha. - A regra é: doce amanhã e doce ontem - e nunca doce hoje.
- Algumas vezes tem de ser "doce hoje" - objetou Alice.
- Não, não pode - disse a Rainha. Tem de ser sempre doce todos os outros dias; ora, o dia de hoje não é outro dia qualquer, como você sabe."

Ferdinand de Saussure, considerado o fundador da linguística moderna, explica, em seu Curso de Linguística Geral, que a linguagem é um objeto heterogêneo e multiforme, porque ela é, ao mesmo tempo, social e individual; física, fisiológica e psíquica. Ele distingue dois aspectos na linguagem: a língua e a fala. A primeira é um produto social depositado na mente de todos os falantes, composto de um sistema de oposições fônicas e semânticas (que produz os sons e os sentidos) e de regras combinatórias desses elementos. A fala é o ato individual de realização da língua. Saussure não explica como se passa de uma a outra. É o que vai fazer outro linguista francês, Emile Benveniste, que mostra que a passagem da língua à fala se dá por meio de uma instância que ele denomina enunciação, que é o ato de dizer, ou seja, "colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização". Isso significa que ela é uma instância de mediação entre a virtualidade da língua e a realização da fala. Se a enunciação é o dizer, o enunciado é o dito.


Eu, aqui e agora

Na verdade, como se coloca a língua em funcionamento? Alguém assume a palavra e dirige-se a outra pessoa e, ao fazer isso, instaura-se como um eu e erige a pessoa a quem se endereça como "tu" (que, na maior parte do Brasil, é realizado como "você"). Esse ato de dizer realiza-se num tempo (agora) e num espaço (aqui). Por isso, a enunciação é a instância, denominada por Benveniste, do ego, hic et nunc, ou seja, do eu, do aqui e do agora. A partir dessa instância do falante, do seu espaço e do seu tempo, criam-se todas as distinções de pessoa, espaço e tempo na língua. O linguista francês nomeia as categorias da enunciação com palavras latinas, para indicar que elas existem em todas as línguas, em todas as linguagens (por exemplo, as visuais).

Benveniste vai chamar aparelho formal da enunciação as categorias de pessoa, de espaço e de tempo, que são centrais no exercício da língua. Os elementos dessas categorias foram denominados embreadores, termo tirado da mecânica. Embreagem é um mecanismo que permite unir um motor em rotação ao sistema de rodas que não estão girando. Palavras como "eu", "tu", "aqui", "aí", "ali", "agora", "então" são chamados embreadores, embreantes ou dêiticos, porque só ganham referência quando se conecta a língua à situação de comunicação. Se lermos, num quadro de recados, o seguinte texto: "Estive procurando-o hoje. Esteja lá amanhã sem falta", não saberemos quem é que esteve procurando, quem ele esteve buscando, quando esteve fazendo isso, quando e onde a pessoa procurada deve estar sem falta. Isso, porque alguém deve ter apagado os elementos da situação de comunicação que permitiriam ancorar os dêiticos: nome do destinatário do recado, local e data em que a mensagem foi escrita, nome do destinador. Esses dados são obrigatórios, por exemplo, numa carta, exatamente para que possamos saber os referentes dos dêiticos que aparecem no texto.

Instância linguística

No texto acima, Alice compreende bem que os dêiticos não têm uma referência fixa, como quer a Rainha: "hoje" é o dia da enunciação; "hoje" foi "amanhã" numa enunciação feita no dia anterior e será "ontem", numa enunciação no dia posterior. Como se observa, o aparelho formal da enunciação reúne língua e fala, o que significa que o exercício da língua ganha outra dimensão. Pela enunciação, o falante não só diz, mas diz-se, cria uma imagem de si mesmo: ao enunciar-se, o enunciador se enuncia. Com isso, Benveniste cria um novo objeto para a Linguística, o discurso (não se trata da fala saussuriana, domínio da liberdade e da criação). Pela enunciação, a língua converte-se em discurso. A fala é, então, apenas a exteriorização psicofísico-fisiológica do discurso.


Marcas

A enunciação deixa no enunciado seus traços e suas marcas: numa narrativa, em primeira pessoa, por exemplo, o enunciador enuncia-se no enunciado, enquanto na chamada narração em terceira pessoa ele não se deixa ver no enunciado.

A enunciação é, pois, uma instância linguística pressuposta pela existência do enunciado. Com efeito, se há um enunciado, há uma enunciação pressuposta; se há um dito é porque alguém o disse. Antes que se afirme que isso é um truísmo, é preciso atentar para a consequência teórica dessa asseveração: o eu/tu, o aqui e agora projetados no enunciado devem distinguir-se do eu/tu, do aqui e do agora pressupostos por ele. Quando se diz "Eu digo que depois da tempestade vem a bonança", há um "eu digo" pressuposto: "(Eu digo) Eu digo que depois da tempestade vem a bonança". Isso significa que esses dois "eu" não se confundem: o "eu" pressuposto é o enunciador; o eu projetado no interior do enunciado é o narrador.

*José Luiz Fiorin é professor do Departamento de Linguística da USP e autor do livro As astúcias da enunciação, da Editora Ática.

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